quarta-feira, 17 de maio de 2017

CHICA DA SILVA

A escrava que virou rainha’: documentário e livros revivem história da brasileira que rompeu padrões do século 18


Zezé Motta como Chica da Silva- Filme de Cacá Diegues em 1976

A atriz Zezé Motta lembra como se fosse hoje o dia em que recebeu o telefonema que mudou sua vida. Do outro lado da linha, o produtor Jarbas Barbosa avisava que ela tinha sido escolhida para interpretar o papel-título do filme de Cacá Diegues, Xica da Silva (1976). "Boa tarde, Chica da Silva!", saudou Barbosa, brincalhão. "Quase desmaiei!", recorda a atriz, aos risos. 
Quarenta anos depois, Zezé Motta volta a trabalhar em uma produção sobre a escrava mais famosa da história do Brasil. Dessa vez, ela irá dirigir o documentário A Rainha das Américas - A Verdadeira História de Chica da Silva, que pretende passar a limpo a trajetória de Francisca da Silva de Oliveira, que ganhou fama e fortuna ao conquistar o coração do contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira. Sua morte completa 220 anos. 
"Chica é daquelas personagens que a gente não sabe muito bem onde termina a história e começa a ficção. Em muitos registros, é tratada como prostituta. Mas, ela e João Fernandes viveram juntos 17 anos e tiveram 13 filhos. Sempre quiseram desqualificá-la, mas nunca conseguiram", diz a atriz. 
O projeto do documentário inclui desde a exumação da ossada de Chica da Silva, sepultada na tumba nº 24 do cemitério da Igreja de São Francisco de Assis, em Diamantina (MG), até a reconstrução de seu rosto em 3D, tarefa que está a cargo do designer Cícero Moraes. 
"Ainda não sabemos como ela morreu, mas já descobrimos que tinha por volta dos 60 anos e que sofria de reumatismo", adianta a roteirista Rosi Young. O projeto prevê, ainda, a construção de uma escultura em Diamantina (MG) e a criação de um holograma em tamanho real. "Se tudo der certo, a imagem de Chica será projetada durante o desfile de uma escola de samba em 2018", diz Rosi. 
Exumação da ossada de Chica da Silva

UMA CHICA, MUITAS VERSÕES 

O documentário A Rainha das Américas, que tem previsão de lançamento para 2017, é apenas um dos projetos que prometem recontar o mito da escrava que virou "rainha". Os outros são o romance Chica da Silva - Romance de Uma Vida, da jornalista Joyce Ribeiro, que já chegou às livrarias, e a biografia Xica da Silva - Cinderela Negra, da escritora Ana Miranda, que será lançada no segundo semestre. 
"Chica tinha tudo para desistir, mas lutou até o fim pelos seus sonhos. Viveu um relacionamento inter-racial, zelou pela educação dos filhos e, depois da ida do marido para Portugal, administrou, sozinha, os negócios da família. É moderna até para os dias de hoje", opina Ribeiro. 
O primeiro relato de Chica de que se tem notícia está no livro Memórias do Distrito Diamantino, de 1868. Foi seu autor, o advogado Joaquim Felício dos Santos, quem imortalizou a personagem como dona de um apetite sexual insaciável. 
"Não possuía graça, não possuía beleza, não possuía espírito; enfim, não possuía atrativo algum que pudesse justificar uma forte paixão", descreveu o autor. Detalhe: ele jamais conheceu Chica ou se baseou em qualquer fonte histórica. 
Quase um século depois, o médico Agripa Vasconcelos lançou Chica que Manda, em 1966. Se Joaquim Felício retratou Chica como lasciva e sedutora, Agripa reforçou o estereótipo da mulher sádica e cruel. Num trecho do livro, conta que Chica mandou cortar a boca de uma suposta amante do contratador. 
O documentário A Rainha das Américas, que tem previsão de lançamento para 2017, é apenas um dos projetos que prometem recontar o mito da escrava que virou "rainha". Os outros são o romance Chica da Silva - Romance de Uma Vida, da jornalista Joyce Ribeiro, que já chegou às livrarias, e a biografia Xica da Silva - Cinderela Negra, da escritora Ana Miranda, que será lançada no segundo semestre. 
"Chica tinha tudo para desistir, mas lutou até o fim pelos seus sonhos. Viveu um relacionamento inter-racial, zelou pela educação dos filhos e, depois da ida do marido para Portugal, administrou, sozinha, os negócios da família. É moderna até para os dias de hoje", opina Ribeiro. 
O primeiro relato de Chica de que se tem notícia está no livro Memórias do Distrito Diamantino, de 1868. Foi seu autor, o advogado Joaquim Felício dos Santos, quem imortalizou a personagem como dona de um apetite sexual insaciável. 
"Não possuía graça, não possuía beleza, não possuía espírito; enfim, não possuía atrativo algum que pudesse justificar uma forte paixão", descreveu o autor. Detalhe: ele jamais conheceu Chica ou se baseou em qualquer fonte histórica. 
Quase um século depois, o médico Agripa Vasconcelos lançou Chica que Manda, em 1966. Se Joaquim Felício retratou Chica como lasciva e sedutora, Agripa reforçou o estereótipo da mulher sádica e cruel. Num trecho do livro, conta que Chica mandou cortar a boca de uma suposta amante do contratador. 
"Construí meu filme como uma fábula política. O conde português simbolizava o imperialismo, o contratador, a burguesia; os moradores da cidade, a classe média; o inconfidente, os revolucionários, e a Xica, a alegoria vitoriosa e solar do povo", detalha o cineasta. 
Muito antes de Cacá Diegues, Cecília Meirelles já prestava tributo à escrava-rainha no livro Romanceiro da Inconfidência, de 1953. "Ainda vai chegar o dia de nos virem perguntar: quem foi Chica da Silva que viveu neste lugar?", eternizou a poetisa. Anos depois, o escritor Walcyr Carrasco convidou a então estreante Taís Araújo para dar vida à protagonista da telenovela Xica da Silva, exibida entre 1996 e 1997 pela extinta TV Manchete. 
Agora, chegou a vez de Ana Miranda dar sua versão para a história. Para ser o mais fiel possível à realidade, tomou como referência Chica da Silva e o Contratador dos Diamantes - O Outro Lado do Mito, da historiadora Júnia Ferreira Furtado, da UFMG. 
Publicada em 2003, a mais completa biografia já escrita sobre Chica descreve a personagem como uma mãe de família dedicada, leal e religiosa. 
"Nunca chegaremos a um consenso sobre figura tão complexa, misteriosa e inquietante. A imagem de Chica foi sendo interpretada à luz dos tempos e a minha Chica é a soma de todas essas interpretações. É um quebra-cabeça de medos, ânsias e sonhos", define a escritora.

FILME: Xica da Silva

ANO: 1976

DIRETOR: Cacá Diegues

RESUMO: O filme focaliza a trajetória de Xica da Silva, que de escrava, tornou-se a primeira dama negra de nossa história, seduzindo o milionário contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira.Promovendo luxuosas festas e banquetes, e exibindo grupos de teatro europeu, que se apresentavam nas salas de sua imensa casa, Xica da Silva ficou conhecida até na corte portuguesa A ostentação atingiu aspectos surrealistas, quando João Fernandes de Oliveira satisfez o caprichoso desejo de sua amante de fazer uma viagem marítima sem sair da região, construindo um lago artificial e uma caravela manobrada por uma tripulação de dez homens.



CONTEXTO HISTÓRICO


A mineração, marcada pela extração de ouro e diamantes atingiu o apogeu em Minas Gerais entre os anos de 1750 e 1770, no período em que a Inglaterra se industrializava e se consolidava como uma potência hegemônica, exercendo uma influência econômica cada vez maior sobre Portugal. Em contraste com o desenvolvimento econômico da Inglaterra, Portugal enfrentava enormes dificuldades econômicas e financeiras com a perda de seus domínios no Oriente e na África, após 60 anos de domínio espanhol durante a União Ibérica (1580-1640).

Nesse mesmo período, em que na América espanhola o esgotamento das minas irá provocar uma forte elevação no preço dos produtos, o Brasil assistia a passagem da economia açucareira para mineradora, que ao contrário da agricultura e de outras atividades, como a pecuária, foi submetida a uma rigorosa disciplina e fiscalização por parte da metrópole.
A extração do diamante inicia-se no vale do rio Jequitinhonha, sendo que durante muito tempo, os mineradores que só viam a riqueza no ouro, ignoraram o valor desta pedra preciosa, utilizada inclusive como ficha para jogo.
Somente após três décadas que o governador das Gerais, D. Lourenço de Almeida, enviou algumas pedras para serem analisadas em Portugal, que imediatamente aprovou a criação do primeiro Regimento para os Diamantes, que estabeleceu como forma de cobrar o quinto, o sistema de capitação sobre mineradores que viessem a trabalhar naquela região.
O principal centro de extração da valiosa pedra, foi o Arraial do Tijuco, hoje Diamantina em Minas Gerais, que em razão da importância, foi elevado à categoria de Distrito Diamantino, com fronteiras delimitadas e um intendente independente do governador da capitânia, subalterno apenas à coroa portuguesa.
A partir de 1734, visando um maior controle sobre a região diamantina, foi estabelecido um sistema de exclusividade na exploração de diamantes para um único contratador. Devido ao intenso contrabando e sonegação, como também ao elevado valor do produto, a metrópole decretou a Extração Real em 1771, representando o monopólio estatal sobre o diamante, que vigorou até 1832.
O ciclo do ouro e do diamante foi responsável por profundas mudanças na vida colonial. Em cem anos a população cresceu de 300 mil para, aproximadamente, 3 milhões de pessoas, incluindo aí, um deslocamento de 800 mil portugueses para o Brasil. Paralelamente foi intensificado o comércio interno de escravos, chegando do Nordeste cerca de 600 mil negros. Tais deslocamentos representam a transferência do eixo social e econômico do litoral para o interior da colônia, o que acarretou na própria mudança da capital de Salvador para o Rio de Janeiro, cidade de mais fácil acesso à região mineradora. A vida urbana mais intensa viabilizou também, melhores oportunidades no mercado interno e uma sociedade mais flexível, se comparada com o caráter estático da sociedade açucareira.



REFERÊNCIAS:

BBC Brasil, 2017. http://www.bbc.com/portuguese/geral-36658302.





quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

RETRATO EM BRANCO E PRETO



Imagem do negro no Brasil foi forjada com chegada da fotografia no século XIX



© REPRODUÇÃO / MARC FERREZ, CESTEIRO, C. 1899
Se, referindo-se à escravidão, Castro Alves pergunta a Deus, em O navio negreiro, “se é verdade tanto horror perante os céus”, não é de se estranhar que o sociólogo Muniz Sodré, no artigo Uma genealogia das imagens do racismo, use um personagem de terror para ilustrar sua visão da visão do negro na nossa sociedade: “Drácula não se reflete no espelho, logo, é sem imagem. Ele é o inverso da identidade normalizada pela cultura pequeno-burguesa. Na sociedade da imagem (anagrama de magia), dos dispositivos de visão, o sujeito só existe se aparece no “espelho”, isto é, se tem condições socioculturais de ter imagem publicamente reconhecível”. Vale lembrar que o conde, assim como a fotografia, são “filhos” do século XIX.“A percepção daquele tempo sobre a fotografia é de que ela não é apenas uma forma de ‘representar’ o mundo, mas de ‘tornar o mundo visível'”, analisa Maurício Lissovsky, historiador da fotografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em meados da década de 1860, no Brasil, o retrato fotográfico se tornara um objeto de desejo para brancos e negros. “No caso destes últimos, se nascidos livres ou libertos, ao se fazerem retratar como os brancos, à moda européia e com códigos e comportamentos emprestados do outro, era uma tentativa de trilhar um caminho dentro de uma sociedade racista e exigente”, observa Sandra Koutsoukos, autora da tese de doutorado “No estúdio do fotógrafo:  representação e auto-representação de negros livres, forros e escravos no Brasil da segunda metade do século XIX”, defendida em outubro, na Unicamp, orientada por Iara Lis Schiavinatto.
A pesquisa “desvela o invisível” presente em imagens de negros com cartolas e suas mulheres com sombrinha, amas e seus “filhos” brancos, assim como os polêmicos “tipos de pretos”, como as imagens do fotógrafo Christiano Júnior, que se anunciava no Almanaque Lammert como dono de “uma variada coleção de costumes e tipos de pretos, cousa muito própria para quem se retira para a Europa”. Exibindo negros e negras seminus (adorados pelos etnólogos racistas), catalogados por sua origem africana, ou em encenações feitas no estúdio de seu trabalho nas ruas e nas fazendas, as imagens chamaram a atenção de Sandra que viu ser “necessário olhar o que estava enquadrado nas fotos, assim como descobrir o que ficara de fora”. Mas Drácula não aparece no espelho. Então, ver o quê?
Afinal, como observa a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, em Olhar escravo, ser olhado, “num retrato, pode-se ser visto e pode-se dar a ver, alternativas ligadas à relação entre retratado e retratante: se o retrato do senhor é uma forma de cartão de visita, o do escravo é um cartão-postal, onde o escravo é visto, não dá a ver”. Num, se tem a preservação da imagem de uma pessoa digna e singular, alguém que, ao encomendar uma fotografia, dá-se a conhecer, esparrama-se pelo papel como gostaria de ser visto, como se vê a si mesmo no espelho; no outro, um personagem pitoresco e genérico, continua a professora. “Em meu estudo, descobri que, apesar de ser levado ao estúdio do fotógrafo e posar, seja trabalhando, seja como pano de fundo de seu senhor, o escravo e o liberto “se davam a ver”, se “mostravam” e que foram, talvez tanto quanto os brancos que posaram para suas fotos em estúdios particulares, os sujeitos daqueles retratos”, analisa Sandra. Para a pesquisadora, em quase todas as imagens há o olhar fixo na objetiva, direto para o fotógrafo, dando voz à imagem. “Muitos não se intimidavam diante da máquina esquisita e davam sua contribuição pessoal por meio da expressão, do olhar sofrido que nos encara e parece contar suas histórias. O luxo ou a encenação não mascaravam a condição do escravo ou do liberto. Se o corpo do escravo era uma propriedade, sua personalidade não era.”
“A fotografia é uma arte maravilhosa, uma arte que excita as mentes mais astutas. E uma arte que pode ser praticada por qualquer imbecil”, reclamou o grande retratista francês Nadar. Sorte da posteridade. Se demorou a ser descoberta (apenas em 1839), chegou rápido ao Brasil, no ano seguinte, trazida pelo abade Compte, aluno de Louis Daguerre, o inventor da fotografia. Antes do Rio, o francês teria passado pela Bahia, cujo pioneirismo está bem apresentado no recém-lançado A fotografia na Bahia, organizado por Aristides Alves, e que traz 215 imagens feitas, de meados do século XIX até 2006, por 107 profissionais baianos e estrangeiros. (Outra fonte excelente é O negro na fotografia brasileira do século XIX, da G. Ermakoff Casa Editorial, 306 págs., R$ 130.) Aliás, até a chegada da fotografia, o olhar oitocentista era um olhar estrangeiro, ligado à tradição de Franz Post, e, mais tarde, de franceses, alemães e suíços que pintaram o cotidiano da corte tropical, preferindo sempre o coté exótico de índios ou de negros em eterna alegria e andanças pelas ruas cariocas, como vemos em Debret e Rugendas. O daguerreótipo era caro e exiga poses demoradas de até 60 minutos.

ANALFABETOS

Em 1854, o francês André Disdéri criou um processo de retratos de tamanho pequeno (9,5 cm por 6 cm), elaborados sobre papel albuminado, que, baratos e de pose rápida, foram uma revolução num país de analfabetos de poucas posses que gostariam se ver imortalizados como os nobres donos das pinturas. O custo de uma dúzia desses cartes de visite, como eram chamados, era o mesmo de um único daguerreótipo e se podia oferecer como mimo para amigos e parentes, fazer álbuns familiares. “Era a democratização da auto-imagem para grupos sociais menos favorecidos. Com o carte de visite, a fotografia se tornaria uma técnica a serviço de todos, um objeto de desejo e status, uma mercadoria de troca”, lembra Sandra. Os jornais estavam repletos de anúncios de estúdios que disputavam sua clientela nos preços e na capacidade de “dar nobreza” ao retratado, seja pela sua técnica, seja pelos apetrechos que possuíam no salão e que enfeitavam o entorno do fotografado. “A fotografia dá ao negro pobre a oportunidade de se distanciar da realidade, de se projetar segundo uma imagem idealizada, fazer a sua representação. A necessidade de registrar uma ascensão social requer a assimilação dos códigos vigentes. Daí a repetição e a uniformização nas poses e acessórios nos retratos.”Nessas, se procuravam “evidências” da inferioridade dos negros e igualmente serviam como base para referendar o ideal da “escravidão civilizada”, nota a pesquisadora. “Apesar da assepsia e da ordem retratadas, a condição de escravo não era mascarada; antes, sua essência era exposta.” Havia também um mercado para fotos de amas, trazendo ao colo a criança branca que amamentara. “Nesse tipo de foto, tentava-se passar uma ideia de harmonia e afeto, num período em que o uso de amas estava sendo condenado pela medicina”, observa Sandra.

© REPRODUÇÃO / PIERRE VERGER, RETRATO, ANOS 1950


O estúdio funcionaria, diz a professora, como um camarim e palco, onde o fotógrafo era o diretor e o cliente, mesmo participando da construção de sua cena, o personagem. Uma foto, mesmo à custa da privação de itens importantes à sobrevivência, era a prova visual para eles, para amigos e parentes de que a sua luta estava valendo a pena. “O momento exigia que, além de ser livre, a pessoa nascida livre ou alforriada parecesse livre para os outros, usando, para tanto, símbolos que indicassem essa sua condição.” Detalhes como estar de sapatos eram indicativos do novo status de liberdade. Gilberto Freyre, em Sobrados e mucambos, conta como os negros, “vestidos à européia”, eram atacados e ridicularizados nas ruas pela “ousadia”. Da mesma forma, muitos escravos eram levados para o estúdio para fazer figuração no retrato de senhores e, com sua humilhação (“mas não com sua atitude”, ressalta a pesquisadora), garantir o registro do poder do senhor. As fotos encenadas, com negros reproduzindo seu labor no estúdio, eram suvenires (cuja organização cênica asséptica, lembra Sandra, servia para tentar passar uma ideia de “escravidão civilizada”) e objetos etnográficos, feitos sob encomenda para sustentar teorias racistas.

HUMORES

Num anúncio do Jornal do Commercio, de 1875, fazia-se a apologia da Farinha Láctea Nestlé, “a verdadeira ama-de-leite”, que, afirmava o reclame, livrava o filho do contágio de enfermidades enoculadas pelo leite estranho, corrompido pelos maus humores de qualquer ama-de-leite”. A modernidade exigia mudanças, mas as mães relutavam em abrir mão do privilégio de “usar” a negra para alimentar o filho. As fotos foram uma tentativa de “segurar” o relógio dos novos tempos. Nessas fotos, avalia a pesquisadora, é ainda mais gritante a força de expressão no olhar da retratada, obrigada a se vestir com luxo forçado.
“Elas são lembranças de que, para haver uma ama negra, houve um bebê negro que, muitas vezes, era separado da mãe para que ela pudesse criar o filho senhorial.” O invisível se torna visível. “O uso social da servidão dos povos africanos criou no Brasil uma estética da exterioridade útil do corpo do negro. O senhor de escravos, como os profissionais do ramo, conheciam melhor os detalhes dos dentes de seus servos do que os de suas filhas, como acontece com os criadores de cavalo de raça atuais. De certos desvios de olhar não ficamos livres até hoje”, analisa o antropólogo da Unicamp Carlos Rodrigues Brandão, em seu artigo O negro olhar.
“Nos jornais e revistas, negros são mais o corpo do que o rosto, mais o tipo e mais ainda a função do que a pessoa. Num país onde negros “puros” são milhões, é o rosto branco, qualquer que seja, que se dá a ver. Os negros e mestiços são quase todos os criminosos do país, pois eis que quase todas as fotografias de criminosos são de mestiços e negros.” É forte, no Brasil, a imagem do negro como máquina corpórea, algo complexo num país que aprendeu a desprezar o trabalho braçal. Negros são os que trabalham, os que são sensuais (mesmo quando revelados como esportistas), os que adoram festas, observa Paulo Bernardo Vaz, professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais e autor de um estudo sobre a imagem do negro.
“O fluxo imagético que mostra o negro sofrendo, apanhando, roubando ou exibindo seu corpo sensual reatualiza significados construídos sócio-historicamente e que sugerem cristalizações que tipificam o negro em uma forma que não favorece uma auto-estima positiva. É o olhar externo que in-forma o negro numa representação pejorativa que pode afetar a sua construção identitária. Afinal, quem quer se identificar com um sujeito que vive sofrendo?” Para Vaz, os meios de comunicação oferecem ao negro a oportunidade contraditória de ser outro e não ele mesmo. “O ‘outro’ representa a ameaça fantasmática de dividir o espaço a partir do qual falamos e pensamos, é o medo de perder o espaço próprio. Medo primitivo, análogo ao terror noturno das crianças. O ‘outro’ acaba virando Drácula, sem imagem legítima”, analisa Muniz Sodré. A Transilvânia, como o Haiti, também pode ser aqui.



REVISTA FAPESP- EDIÇÃO 132- FEVEREIRO 2007 - CARLOS HAAG

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

DOS RÉIS AO REAL: AS MOEDAS NO BRASIL


A história do dinheiro no Brasil é cheia de reviravoltas

A gente sempre quis ter. Comida, roupas, terras – e coisas que pertenciam a outras pessoas. Há 10 mil anos, como não existia dinheiro, a solução era darmos algo que tínhamos de bastante valor em troca do que queríamos. De lá para cá, muita coisa foi usada para fazer essas negociações: bois (provavelmente a primeira forma de moeda), conchas (muito usadas na China e na Austrália), sal (que os gregos trocavam por escravos), sementes de cacau (adotadas pelos maias e pelos incas) e até tulipas (dadas na Holanda como dote de casamento).

No Brasil, já usamos açúcar, tabaco e até notas estrangeiras (no século 17, o florim holandês foi fabricado em Recife), além de um sem-número das nossas próprias moedas, que perdiam valor rapidamente. Com base no novo livro Linha do Tempo – Uma Viagem pela História da Humanidade, de autoria da editora de História Cláudia de Castro Lima, conheça os melhores momentos dos cinco séculos do dinheiro em nosso país.



Trocas malucas:

"ATÉ CONCHA JÁ FOI USADA POR AQUI"

1500 - TOSTÃO
Ao chegar ao Brasil, os portugueses encontram cerca de 3 milhões de índios vivendo em economia de subsistência. Já os colonizadores usam moedas de cobre e ouro, que têm diversos nomes de acordo com a origem: tostão, português, cruzado, vintém e são-vicente.

SÉCULO 16 - JIMBO E RÉIS
A pequena concha era usada como moeda no Congo e em Angola. Chegando ao Brasil, os escravos a encontram no litoral da Bahia e mantêm a tradição. Desde o descobrimento, porém, a moeda mais usada é o real português, mais conhecido em seu plural “réis”, que valeu até 1942.

1614 - AÇÚCAR
Por ordem do governador do Rio de Janeiro, Constantino Menelau, o açúcar é aceito como moeda oficial no Brasil. De acordo com a lei, comerciantes eram obrigados a aceitar o produto para pagar compras.

1695 - CARA E COROA
A Casa da Moeda do Brasil, inaugurada na Bahia um ano antes, cunha suas primeiras moedas de ouro. Em 1727, surgem as primeiras moedas brasileiras com a figura do governante de um lado e as armas do reino do outro, conforme a tradição européia. Os termos “cara” e “coroa” vêm daí.

1942 - CRUZEIRO
Na primeira troca de moeda do Brasil, os réis são substituídos pelo cruzeiro durante o governo de Getúlio Vargas. Mil réis passam a valer 1 cruzeiro; é o primeiro corte de três zeros da história monetária do país. É aí que surge também o centavo.

1967 - CRUZEIRO NOVO
O cruzeiro novo é criado para substituir o cruzeiro, que levou outro corte de três zeros. Mais uma vez, isso ocorre por causa da desvalorização da moeda. Para adaptar as antigas cédulas que estavam em circulação, o governo manda carimbá-las.

1970 - CRUZEIRO
A moeda troca de nome e volta a se chamar cruzeiro. Dessa vez, porém, só muda o nome, mas não o valor. Ou seja, 1 cruzeiro novo vale 1 cruzeiro.

1986 - CRUZADO
Por causa da inflação, que alcança 200% ao ano, o governo de José Sarney lança o cruzado. Mil cruzeiros passam a valer 1 cruzado em fevereiro deste ano. No fim do ano, os preços seriam congelados, assim como os salários dos brasileiros.

1989 - CRUZADO NOVO
Por causa de inflação de 1000% ao ano, ocorre uma nova troca de moeda. O cruzado perde três zeros e vira cruzado novo. A mudança é decorrência de um plano econômico chamado Plano Verão, elaborado pelo então ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega.

1990 - CRUZEIRO
O cruzado novo volta a se chamar cruzeiro, durante o governo de Fernando Collor de Mello. O mesmo plano econômico decreta o bloqueio das cadernetas de poupança e das contas correntes de todos os cidadãos brasileiros por 18 meses.

1993 - CRUZEIRO REAL
No governo de Itamar Franco, com Fernando Henrique Cardoso como ministro da Fazenda, o cruzeiro sofre outro corte de três zeros e vira cruzeiro real. No fim do ano, o ministro cria um indexador único, a unidade real de valor (URV).

1994 - REAL
Após uma inflação de 3700% em 11 meses de existência do cruzeiro real, entra em vigor a Unidade Real de Valor (URV). Em julho, a URV, equivalendo a 2750 cruzeiros reais, passa a valer 1 real.



REVISTA AVENTURAS NA HISTÓRIA - 01/08/2008

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

AVANTI, SÃO PAULO!

Por meio de sindicatos, greves, jornais e eventos culturais, os italianos contribuíram muito para a formação do movimento operário brasileiro
                                                                                                                                                                                     Luigi Biondi*

Os avanços trabalhistas dos anos 1930 foram comemorados e são facilmente associados ao governo do presidente Getúlio Vargas, que os consagrou. Entretanto, muitas dessas conquistas eram anseios antigos da população, e brotaram também a partir das experiências que os imigrantes italianos trouxeram para o Brasil.
Os Emigrantes. Angiolo Tommasi, 1895

Eles vieram em grande número. As fábricas e oficinas de São Paulo tinham em seu quadro de funcionários quase 80% de italianos em 1900. Doze anos depois, esses trabalhadores ainda compunham 60% dos operários da indústria têxtil do estado, constituindo boa parte da mão de obra urbana tanto na capital quanto no interior. Da Itália, eles trouxeram a organização em grupos de ação política e sindical, ou ajudaram a fundar no Brasil essas agremiações com outros imigrantes e brasileiros. Onde os italianos eram maioria, como nas cidades paulistas – com exceção de Santos –, o movimento operário organizado era fortemente caracterizado por eles.
A imprensa operária que circulava no estado foi escrita sobretudo em italiano até o início dos anos 1920. Um exemplo é o jornal Avanti!, principal periódico socialista no Brasil e único jornal operário do país com edição diária, de 1902 a 1908.
Assim como ocorria na terra natal, os trabalhadores se agregavam em grupos políticos de várias tendências. Os socialistas estavam ligados ao movimento social-democrata, coordenado pela Associação Internacional dos Trabalhadores, a Segunda Internacional. Acreditavam na integração da ação política de partidos operários com a atividade econômica cooperativa e de confronto entre patrões e empregados por meio dos sindicatos. Além disso, promoviam manifestações, práticas educativas e culturais em associações políticas, de ensino e lazer.  

Também os anarquistas atuaram valendo-se de jornais e na área da cultura, participavam do movimento operário nos momentos de radicalização do conflito de classe, como as greves, embora, em geral, fossem críticos dos sindicatos e das greves parciais e a favor da ação direta dos trabalhadores. Entre 1904 e 1912, publicaram semanalmente aquele que foi considerado o principal jornal libertário no Brasil, La Battaglia, editado em São Paulo e distribuído em todo o país.
Mas esses grupos não eram a maior força. Desde 1904 até o fim da Primeira República, a principal tendência entre os trabalhadores italianos foi o Sindicalismo Revolucionário, que unia elementos do socialismo e do anarquismo. Seus expoentes acreditavam na organização sindical estruturada e nas greves parciais com conquistas moderadas, porém relevantes para o dia a dia do trabalhador. Ao mesmo tempo, tinham como objetivo final a greve geral revolucionária, que teria iniciado uma sociedade socialista fundada nos sindicatos.
Outro reforço importante eram as associações de socorro mútuo. Integradas principalmente por artesãos e operários qualificados, forneciam ajuda aos seus sócios em casos de doença e aposentadoria. Promoviam encontros, comemorações, cursos educativos e apoio a manifestações sindicais.
E foi assim, por meio dessa cultura, que os imigrantes italianos praticaram novas formas de organização e luta trabalhista durante a Primeira República (1889-1930).


*Professor da Universidade Federal de São Paulo e autor de Classe e Nação (Editora da Unicamp, 2011).

MATÉRIA PUBLICADA NA REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL, SETEMBRO DE 2011.



PARA ACOMPANHAR, NADA MELHOR QUE UM DOCUMENTÁRIO DA HISTÓRIA :



DOCUMENTÁRIO: Gigantes do Brasil

SINOPSE: Em 516 anos de história brasileira, pouco e conhece sobre a vida dos grandes nomes que fizeram parte da formação econômica e social do país. Foi no início dos anos 1900 que o Brasil começa a ser uma República, um país totalmente diferente do que temos hoje, mas os bons negócios se sobressaem. A história de quatro imigrantes. Matarazzo um imigrante italiano que vem para o país construir uma vida e constrói um império. Farquhar o Norte-Americano que chega ao Brasil e  tem no seu currículo a mais espetacular e impossível obra brasileira a Ferrovia Madeira Mamoré, no estado de Rondônia. O italiano Martinelli, é outro gigante que não precisa de apresentações. Andar pelo centro de São Paulo e não admirar o Edifício Martinelli e pensar em sua astucia em levantar um prédio desse em pleno século XIX é respirar ar do passado certamente. E por fim, o francês Guinle e suas obras mirabolantes por nosso território e adrenalina na veia assistindo essa série. Explorar esse mundo não está mais longe. O Canal History Channel lança e 4 episódios a história desses imigrantes que levaram o Brasil e São Paulo para frente.

ANO DE PRODUÇÃO: 2015

DURAÇÃO: 200 minutos ( 4 episódios de 50 minutos cada)      


ASSISTA ONLINE: 

sábado, 11 de fevereiro de 2017

80% DOS DOCUMENTOS GUARDADOS EM ÓRGÃOS PÚBLICOS DO ESTADO DE SÃO PAULO SÃO INÚTEIS


Em 2015, 1.083,98 toneladas de papel foram eliminadas dos órgãos públicos do estado de São Paulo.E isso é só 2% do que poderia ir para o lixo.


Você abre o armário. Uma pilha de roupas amassadas escorrega e cai aos seus pés, anunciando a inevitável bagunça. Deu preguiça só de pensar em arrumar tudo isso? Marcelo Henrique de Assis, diretor do Centro de Gestão Documental do Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP), conhece essa sensação como ninguém. Em 2010, sua equipe abriu o “armário” de documentos do Departamento de Trânsito de São Paulo, o Detran: a ideia era dar uma mãozinha na arrumação dos papéis do órgão, desenvolvendo uma tabela que explica quanto tempo um determinado documento precisa ou não ficar guardado antes de ser descartado de acordo com critérios de relevância jurídica e cultural — uma ciência chamada arquivologia.
Cinco anos depois, o método deu certo. 82.157 caixas de arquivo, repletas de pedidos de CNH, multas, ofícios, cartas e até abaixo-assinados, foram enviadas para reciclagem. Nada disso tinha validade legal ou histórica. Os galpões que essa papelada ocupava eram alugados por R$ 125 mil mensais, e uma empresa cobrava outros R$ 850 mil para fazer a manutenção do local. A economia de quase R$ 1 milhão para o estado paulista, porém, é só a ponta do iceberg para os arquivistas. Em 2015, o Apesp ajudou a descartar 151.555 caixas de arquivo inúteis de órgãos públicos. Empilhadas, elas alcançariam 20 mil metros, ou mais de duas vezes a altura do Monte Everest. Foi um recorde. Em 2013, 57.130 caixas foram eliminadas; em 2014, 75.532.
“Nós verificamos, em 2010, 800 quilômetros de documentos guardados em órgãos públicos. E nossa nova estimativa é de mil quilômetros, mais ou menos. É provável que 80% disso possa ser descartado sem prejuízo”, explica Assis, completando o raciocínio com uma conta rápida: “Isso dá 7.142.857 caixas de arquivo”.
Como chegamos a esse ponto? “No setor público, tudo que acontece é registrado, mas os instrumentos que dão respaldo legal e social à eliminação de documentos não existiam até 2004”, explica o arquivista. Ou seja, sempre produzimos documentos, mas faz só dez anos que há uma forma de saber o que pode ou não ser descartado. O raciocínio é simples: ninguém joga fora a nota fiscal de uma geladeira ou fogão antes do término da garantia. Mas se você não soubesse a duração da garantia, guardaria a nota por tempo indeterminado. Imagine agora que, em vez do conserto de um eletrodoméstico, estivesse em jogo um documento capaz de provar um crime ou um papel que registra parte da história do país. Desde a década de 1940, com a ampliação das funções do Estado, o número de itens que é “melhor guardar” aumentou vertiginosamente.
“O senso comum vê o documento como algo inútil, mas ele assegura a vida em sociedade, os direitos e deveres das pessoas”, afirma Ieda Pimenta Bernardes, doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e responsável pela implantação do Sistema de Arquivos do Estado de São Paulo, o SAESP. Produzir documentos demais não é errado, mas precisamos saber quando cada um deles deixa de ser útil, buscando formas eficientes de processá-los e armazená-los que considerem as políticas de transparência e acesso à informação. Ler e interpretar papéis burocráticos não são atividades das mais divertidas, mas disponibilizá-los à população é um dever de qualquer Estado democrático. 
Parte da solução para o armazenamento de informações poderia estar na digitalização dos arquivos, mas o critério para seleção e arquivamento de documentos é mais importante do que a plataforma dos registros. “Digitalizar é como fotografar com o celular”, explica Francisco Carlos Paletta, professor de Ciências da Informação na USP. “Antes, quando um rolo de filme tinha apenas 12 ou 24 poses, tomávamos muito cuidado com cada clique. Agora, tiramos 10 mil fotos, mas qual parcela disso é relevante? Não podemos digitalizar lixo só porque há espaço.” O rápido processo de obsolescência e a dificuldade de garantir a autenticidade e evitar a adulteração de documentos no meio virtual também são problemas. Hoje, podemos saber como e quando nossos bisavôs chegaram ao Brasil ao abrir um livro de registro com mais de um século de idade. Um disquete com essas mesmas informações, entretanto, não poderia ser lido por praticamente nenhum computador atual. Se o papel tem o inconveniente de ocupar espaço, ele também é menos suscetível ao tempo e a adulterações.
Com quilômetros de prateleiras, temperatura e umidade controladas e um silêncio sepulcral, o Arquivo Público paulista não parece um dos lugares mais fascinantes para visitação. Mas, muito além de guardar a história das instituições, ali está a história de cada um de nós. “A partir dos anos 1990, após a queda do Muro de Berlim, surgiu na Europa a expressão ‘arquivos sensíveis’, ou seja, documentos que mexem com a vida das pessoas”, destaca Marcelo Quintanilha Martins, diretor do acervo permanente do Apesp, onde boa parte da história de São Paulo está guardada, de censos demográficos do século 18 aos arquivos da Ditadura Militar, procurados até hoje por quem busca o paradeiro de presos políticos. Ali, até mesmo as lacunas deixadas por momentos políticos mais conturbados são parte da história: afinal, um governo que nada registra diz muito sobre si mesmo.
Um papel de alguns séculos de história é visto como uma relíquia, não importa sua relevância. Mas quase ninguém percebe que, daqui a cem anos, um documento emitido hoje também será uma recordação do passado. É preciso limpar o armário e separar o útil do inútil, para dar às próximas gerações um retrato transparente de nosso tempo. Imprima esta matéria. E guarde bem guardada.
Os números do arquivo

No APESP só há espaço para história. Muita história. Lá estão guardados...
3,5 milhões de documentos de pessoas, partidos políticos, empresas e movimentos sociais de interesse dos órgãos de repressão acumulados pelo DEOPS, órgão da polícia civil paulista responsável pela manutenção da ordem social e política durante a Ditadura Militar. Foi fundado em 1924 e encerrado em 1983, com o processo de democratização.

30 mil mapas, plantas, croquis e esboços produzidos entre os séculos 16 e 19.
70,8 mil caixas de arquivo.
2,5 milhões fotografias, negativos, filmes e ilustrações.

3,5 milhões documentos.


Matéria Publicada na Revista Galileu, 09/06/2016- Bruno Vaiano.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

ARQUIVO PÚBLICO, EM BRASÍLIA, ABRE ACERVO SOBRE A DITADURA. APÓS DÉCADAS DE SIGILO.

Plano de atentado do Hezbollah em Brasília. Desconfiança do envolvimento de padres e bispos católicos com grupos armados. Investigações que levaram a dezenas de prisões de militantes de esquerda e de gente inocente em todo o Distrito Federal. Vidas de servidores públicos, políticos e empresários devassados. Segredos de parte importante da história da capital e do país começam a ser desvendados. Muitos com enredos trágicos, que envolvem crimes comuns, como o consumo de drogas, a crimes praticados por agentes da ditadura.  

Após meio século de sigilo, o Arquivo Público do DF (ArPDF) permitiu consultas ao acervo da Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF). São quase 100 caixas de documentos com informações de 1963 a 1990, guardadas há mais de 50 anos. Muitos contêm o carimbo “Confidencial” e os timbres de diversos órgãos de repressão, incluindo o temido DOI-CODI. São registros das operações realizadas por agentes do regime comandado por generais, até então mantidos sob sigilo.
Os documentos estavam no Arquivo Público do Distrito Federal desde 1995, mas o acesso era restrito a funcionários: papelada timbrada e resguardada pelo carimbo "Confidencial"

Entre elas, uma ampla apuração, feita em 1984, sobre movimentos como o que a ex-vice governadora do DF e fundadora do PT na capital, Arlete Sampaio, integrava quando era estudante. Dossiê do Serviço Nacional de Informações (SNI) traz a ficha daqueles apontados como líderes e descrição das organizações. “Nunca fui atrás desses  arquivos, mas tenho a curiosidade de saber o que escreveram sobre mim”, afirmou ontem.         
Coordenadora de Arquivo Permanente do ArPDF, Marli Guedes classifica os documentos como fundamentais. “Os dossiês possibilitam tomar conhecimento da dor das famílias, dos desaparecidos políticos e de como o Estado perseguia a população”, defende. O GDF publicou edital, no fim do ano passado, reconhecendo os documentos da Secretaria de SSP-DF como “necessários à recuperação de fatos históricos de maior relevância”. O Executivo deu 60 dias para manifestações e, como não houve questionamentos, o acervo está disponível para consultas. Equipe do Correio examinou mais de 2 mil páginas, cruzou informações e entrevistou alguns dos personagens mencionados na documentação. O material embasa a série de reportagens Brasília Confidencial, iniciada hoje.        

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Quantidade de caixas com documentos reservados da Secretaria de Segurança Pública abertos a pesquisa.

Órgão temido          


O DOI-CODI é a sigla para Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna, criado pelos militares para prender e torturar qualquer um contrário ao regime. Os integrantes desse órgão de repressão eram treinados na Escola Superior de Guerra (ESG) e defendiam os ideais disseminados pelos ditadores.   

“Éramos adolescentes. Conversávamos por carta e tínhamos a ideia de combate ao regime militar. Para eles, isso era o Grupo Caratinga. Mas a ditadura havia desmantelado as células de guerrilha do campo e da cidade. As pessoas estavam recolhidas em universidade, estudando. Não representávamos nenhum risco” 

                                                                                  Romário Schettino


Matéria Publicada no Jornal Correio Brasiliense, 04/02/2017- Adriana  Bernardes e Renato Alves.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

INTOLERÂNCIA SOCIAL SINÔNIMO DE MASSACRE BRASILEIRO



Não conhecendo nosso passado, nos tornamos cúmplices de crimes que acontecem diariamente diante de nós, como a jornalista Daniela Arbex fala “enquanto o silêncio acobertar a indiferença à sociedade continuará avançando em direção ao passado de barbárie”.
Dados do Ministério da Saúde apontam quem 12% da população brasileira, 22 milhões de pessoas, necessitam de algum atendimento em saúde mental. Há 1.620 Centros de Atenção Psicossocial instalados no país, isso deixa muito longe o indicador do CAPS, que é um centro para cada 100 mil habitantes. Com esses dados podemos falar sobre o livro Holocausto Brasileiro: vida genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil, escrito pela jornalista Daniela Arbex, da editora Geração Editorial, publicado em 2013.  Suas 256 páginas contam uma intrigante história dos sobreviventes de um holocausto em território brasileiro, que ocorreu em grande parte do século XX. Essa história se passa no maior hospício do Brasil, na cidade de Barbacena em Minas Gerais, chamado Colônia.
 Uma leitura que te prende do prefácio até o décimo quarto capítulo que conta a herança que o Colônia deixou para o país. Mais de 60 mil mortes ocorreram dentro dos muros do hospício, no período de maior lotação uma média de 16 mortes por dia, e até na sua morte era lucrativo, pois no período de 1969 a 1980 foram vendidos mais de 1800 corpos para as faculdades do país, um comercio que gerou mais de 600 mil reais de lucro, nos dias de hoje para o hospício. O pior é que se estima que 70% da população que o hospício abrigou não tinham doença mental alguma, mas sim epiléticos, alcoólicos, homossexuais, prostitutas gente que se rebelava ou gente que se tornava incomodo para alguém. Essas pessoas eram transportadas do mesmo modo que os judeus no campo de concentração, por trens que não tinham volta, chegando lá comiam ratos, bebiam esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram espancados e violados, de todos os meios desde abusos sexuais, até eletrochoques que às vezes eram tanto que chegavam a derrubar a energia da cidade. Uma história que mostra mais uma intolerância social que produziu um massacre na história brasileira. Pessoas conhecidas mundialmente vieram ao hospício, como o italiano Franco Basaglia, que afirmou estar em um campo de concentração nazista.
            Nesse livro encontramos depoimentos de pessoas que, trabalharam, que foram internadas, passaram por lá, defenderam, lutaram para o termino de um hospício com capacidade para 200 pessoas, mas com 5 mil “pacientes”.Fora isso encontramos desde como foi construído o hospício na cidade até como ele está virando um museu. Nessa parte é interessante que a autora cita que muitos coronéis mineiros “nasceram” na época da construção do Colônia, devido ao hospício ser considerado na época um grande curral eleitoral.
            Em suma, esse livro nos traz um passado não tão distante, um passado que não pode ser esquecido, e com ele podemos refletir que os campos de concentração, não estão muito além dos muros do hospício de Barbacena, mas encontramos também esses descasos nos hospitais públicos lotados que funcionam precariamente em muitas cidades do país, as prisões brasileiras que são temas de massacres também. De um modo em geral quando há um descaso se tornamos prisioneiros da realidade, o fato é que essa história que vale a pena ler é a nossa história, apresenta a omissão coletiva, e não esquecendo que a nossa sociedade de tão conservadora é incapaz de suportar diferenças, demonstrando através do hospício todo seu poder de opressão. Uma boa leitura.

PARA ACOMPANHAR, NADA MELHOR QUE UM DOCUMENTÁRIO DA HISTÓRIA DO LIVRO:



DOCUMENTÁRIO: Em Nome da Razão, um Filme Sobre os Porões da Loucura.

SINOPSE: Documentário quase todo filmado no manicômio de Barbacena, Minas Gerais. A câmera penetra em todos os ambientes do hospital - pavilhões de velhos, aleijados, crianças, homens e mulheres. As sequências são interligadas pela imagem de um longo e escuro corredor do hospício e uma 'louca' que canta uma música. Texto narrado em off propõe uma reflexão sobre a função social do manicômio a quem servem os hospitais psiquiátricos, quem são as pessoas enviadas para lá, qual o processo de 'cura' e recuperação a que são submetidos. O filme encerra com depoimentos da família de um paciente.

ANO DE PRODUÇÃO: 1979

DURAÇÃO: 25 minutos