Escravos fugidos
assombravam a Colônia e inspiraram lendas que a História não confirma
João José Reis
{Fuga de escravos,
óleo sobre tela por François Auguste Biard (1859). }
A formação de
grupos de escravos fugitivos se deu em toda parte do Novo Mundo onde houve
escravidão. No Brasil, estes grupos foram chamados de quilombos ou mocambos.
Alguns conseguiram reunir centenas de pessoas. O grande quilombo dos Palmares,
na verdade uma federação de vários agrupamentos, tinha uma população de alguns
milhares de almas, embora provavelmente não os quinze, vinte e até trinta mil habitantes
que alguns contemporâneos disseram ter.
Depois de Palmares
os escravos não conseguiram reproduzir no Brasil qualquer coisa próxima. Os
senhores e governantes coloniais cuidariam para que o estrago não se repetisse.
Foi criado o posto de capitão-do-mato (também conhecido como
capitão-de-entrada-e-assalto e outros termos), instituição disseminada por toda
colônia como milícia especializada na caça de escravos fugidos e na destruição
de quilombos.
Assombrada com as
dimensões de Palmares, a metrópole lusitana procurou combater os quilombos no
nascedouro. No século XVIII quilombo já era definido como ajuntamento de cinco
ou mais negros fugidos arranchados em local despovoado. Essa definição,
concebida para melhor controlar as fugas, terminou por agigantar o fenômeno aos
olhos de seus contemporâneos e de historiadores posteriormente. Contados a
partir de cinco pessoas, o número de quilombos foi inflacionado nos documentos
oficiais. Mas se, em geral, não figuravam como ameaça efetiva à escravidão,
eles passariam a representar uma ameaça simbólica importante. Os quilombolas
povoaram pesadelos de senhores e funcionários coloniais, além de conseguir
fustigar com insistência desconcertante o regime escravista.
Para senhores e
governo, o problema maior estava em que na sua maioria os quilombos não
existiam isolados, perdidos no alto das serras, distantes da sociedade
escravista. Embora em lugares protegidos, os quilombolas amiúde viviam próximos
a engenhos, fazendas, lavras, vilas e cidades. Mantinham redes de apoio e de
interesses que envolviam escravos, negros livres e mesmo brancos, de quem
recebiam informações sobre movimentos de tropas e outros assuntos estratégicos.
Com essa gente eles trabalhavam, se acoitavam, negociavam alimentos, armas,
munições e outros produtos; com escravos e libertos podiam manter laços
afetivos, de parentesco, de amizade.
É claro que houve
muitos casos de quilombos isolados, às vezes encontrados por expedições que até
desconheciam sua existência. Mas as evidências para o próprio Palmares, e mais
ainda para os quilombos que o sucederam Brasil afora, apontam para uma relação
muito mais intensa entre quilombolas e outros grupos sociais. Quilombos como os
que cercavam Vila Rica (atual Ouro Preto) no século XVIII, ou o do Catucá, que
se desenvolveu nos arredores de Recife e Olinda entre 1817 e 1840, aqueles
instalados em redor de Salvador e de São Paulo nas primeiras décadas do século
XIX, o quilombo do Piolho nas vizinhanças de Cuiabá, na década de 1860, os
fluminenses da bacia do Iguaçu e da periferia da Corte, assim como os da
periferia de Porto Alegre, ao longo do século XIX, todos mantinham redes
de comércio, relações de trabalho, de amizades, parentesco, envolvendo
escravos, negros livres e libertos, comerciantes mestiços e brancos. A essa
complexa trama de relações Flavio Gomes chamou de “campo negro”, um espaço
social, econômico e geográfico através do qual circulavam os quilombolas, que
incluía senzalas, tavernas, roças, plantações, caminhos fluviais e pântanos,
alcançando vilas de pequeno porte e cidades do porte do Rio de Janeiro, quando
já era a mais populosa do Brasil em meados do século XIX.
Essas relações de
alto risco atormentavam senhores e governantes coloniais e imperiais. Os
amocambados também assaltavam viajantes nas estradas, às vezes tornando-as
intransitáveis, e atacavam povoados e fazendas, onde roubavam dinheiro e outros
bens, recrutavam ou sequestravam escravos. Mas além de assaltar,
roubar e sequestrar, eles também plantavam, colhiam, caçavam, constituíam
família.
São numerosos os
relatos que dão conta da destruição de roças de milho, frutas, algodão, cana e
outros produtos cultivados pelos quilombolas. Cultivavam, sobretudo, a
mandioca, com que faziam farinha eles próprios. Quando atacados, as roças eram
arrasadas para “não tornarem a servir de Criminozo azilo”, como escreveu o
capitão-mor que destruiu os quilombos do Orobó e Andaraí na Bahia, em 1796.
Nas áreas de
mineração os fugitivos se dedicavam à prospecção de pedras e metais preciosos,
que trocavam clandestinamente com taverneiros por produtos necessários à sua
sobrevivência, além de armas e munição. Em alguns casos conseguiam o suficiente
para comprar a alforria, passando de negros fugidos a negros libertos.
Segundo a
historiadora norte-americana Mary Karasch, os quilombolas de Goiás descobriram
numerosas lavras auríferas, que eram posteriormente apropriadas pelos caçadores
de escravos. A caça ao quilombola e a procura do ouro caminhavam juntas nas
expedições feitas ao interior. A entrada realizada em 1769, a partir de Minas
Gerais, pelo mestre-de-campo Inácio Correia Pamplona, foi saudada por um
sertanejo versejador, que entre loas ao comandante arrematava:
Tudo feito nesta
maneira
pólvora, chumbo e
patrona,
espingardas à
bandoleira,
entrando duas
bandeiras
Procurando Negros
e ouro,
Deus nos depare um
tesouro
para garrochiar
neste touro.
O historiador e
etnólogo Edison Carneiro, a propósito, escreveu que “o quilombo [...] serviu ao
desbravamento das florestas além da zona de penetração dos brancos e à
descoberta de novas fontes de riquezas”.
No Rio de Janeiro
oitocentista, os quilombolas de Iguaçu mantinham intenso comércio de madeiras
com a Corte e também se empregavam nas fazendas de proprietários que sabiam
estar contratando negros fugidos. No Maranhão, em 1867, um juiz de direito
denunciava “A ambição desregrada de certos indivíduos, ambição que os leva a
seduzir escravos para fugir, tendo em vista tirar vantagens com as colheitas
destes, que as vendem por módicos preços”. Esta era, aliás, uma prática comum.
Os donos de escravos frequentemente publicavam anúncios em jornais ameaçando de
processo e exigindo indenização dos coiteiros. No sul da Bahia, na vila de
Barra do Rio de Contas (atual Itacaré), em 1806, dezenas de escravos se
aquilombaram numa comunidade de lavradores que os empregavam no cultivo da
mandioca. Quando este quilombo, chamado Oitizeiro, foi disperso, descobriu-se
que os próprios escravos dos lavradores eram prósperos produtores de mandioca e
ativos coiteiros de calhambolas.
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